As Vantangens do Pessimismo, de Roger Scruton

Arthur S. E.
6 min readDec 10, 2019

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“Os erros mais óbvios são os mais difíceis de corrigir.”
— Sir Roger Scruton

“Professor Sir Roger Scruton” • http://www.aj-lawson.com/?page_id=1364

Nota: Não tomar o termo “pessimismo” aqui usado por Scruton por “niilismo” em qualquer acepção; é antes sinônimo de prudência, cautela, desconfiança.

Sir Roger Scruton (1944–2020) é considerado um dos maiores expoentes contemporâneos do conservadorismo e apontado, inclusive, como o mais bem-sucedido intelectual conservador britânico desde Edmund Burke. As Vantagens do Pessimismo e o Perigo da Falsa Esperança foi publicado no Brasil em 2016 pela Editora É Realizações.

O livro sintetiza de que forma os avanços empolgados pelo falso otimismo em direção à perfeição, fundamentados por raciocínios enganosos, contribuíram para as calamidades e desgraças históricas da Europa. Scruton dispõe uma lista de falácias que compõem o pensamento daqueles que ele chamou de “otimistas inescrupulosos”, além de defender princípios civilizacionais elementares, como a liberdade, o convívio respeitoso e a proteção da cultura.

I. Em nome da razão

Percebe Roger Scruton como o progresso científico foi transfigurado em arma poderosíssima durante o século XX: mais como doutrina à qual intelectuais, propagandistas, articuladores do poder e políticos se apegavam com devoção tal qual à dos fiéis religiosos do que como artifício na produção de metralhadoras potentes, aeronaves sofisticadas e estratégias militares. As atrocidades dos regimes totalitários já vinham, por causa dessa artimanha, com desculpa pronta e, portanto, descarregadas de culpa. A “liquidação dos kulaks” pelos soviéticos foi justificada pela “ciência marxista”; as doutrinas racistas dos nazistas, amparadas pela eugenia científica; e “O Grande Salto para o Futuro” de Mao Tsé-Tung, considerado a aplicação das leis comprovadas da história.

Evidentemente, todas eram falsas. Scruton aponta que elas derivaram da insensatez triunfante daquele tipo racionalista que tudo faz “em nome da ciência e da razão”. Essa maluquice integra um enorme fundo de irracionalidade que, se criticado, força o otimista inescrupuloso a improvisar um malabarismo que inverte todas as posições. Quem insulta o bom senso e as limitações humanas é vítima de deturpação e má compreensão de suas ideias; os céticos não só são os ignorantes incapazes de assimilar suas teorias geniais, mas também são “maus”, “preocupados em destruir as esperanças de toda a humanidade”.

Todo e qualquer contraponto é instantaneamente entendido como ameaça à liberdade intelectual do otimista — a de acreditar em qualquer ninharia, desde que isso lhe agrade. Isso tudo cria o ambiente propício para que ele não aceite a responsabilidade pelos efeitos de suas crenças, já que ninguém consegue compreendê-las e em todo teste prático são deturpadas. Assim, suas utopias continuam a ser disseminadas. Ao apelo das ideologias pertence a intangibilidade típica das utopias, a qual lhes serve de munição, sendo que o cerne do movimento inteiro encontra-se no estado de preparação constante. Negar até mesmo os avanços de suas premissas, de maneira que suas exigências nunca cessem, é estratagema natural do modus operandi de seus ativistas: o objetivo em si importa menos do que o sentido que a “luta por direitos” representa em suas vidas. O autor, pois, classifica as utopias como um grande símbolo de negação.

Ao discorrer sobre a falácia utópica, no capítulo 4, Roger Scruton diz que a inclinação utópica não é simples erro de raciocínio, mas uma postura mental, caracterizada por uma necessidade moral e metafísica particular, assim como pela total ignorância das constatações sensoriais, do senso comum etc. Em todas as suas versões, a utopia é como a unidade do ser, na qual os atritos não mais existem, porque as divergências e condições que os criam foram abolidas. Essas condições são vistas de modo que autorize a violência — para confiscar a propriedade, para impor a igualdade, para eliminar o poder.

O crente comum, na contramão, entende que o reino de Deus não é deste mundo terreno e que é mais provável a sabedoria estar contida implicitamente nos costumes resistentes ao teste do tempo do que racionalmente na cabeça de algum visionário. “Qualquer tentativa de construir o Céu na terra será tanto presunçosa quanto irracional.”

II. O “nós” vs. O “eu”

No capítulo A falácia do nascido livre, Scruton discute as implicações da famigerada declaração de Rousseau, em O Contrato Social, de que o homem nasce livre, mas está acorrentado por toda parte. Segundo Scruton, ela foi posteriormente usada para amparar a tirania dos revolucionários:

Rousseau forneceu a linguagem, e as avenidas de pensamento, com as quais foi possível introduzir uma nova concepção de liberdade humana, segundo a qual a liberdade é aquilo que sobra quando eliminamos todas as instituições, todas as limitações, todas as leis e todas as hierarquias. E seus seguidores acreditavam que essa liberdade, uma vez obtida, se expressaria na felicidade e na irmandade da humanidade.

O otimista inescrupuloso enxerga o mundo como um círculo hermético onde o “eu” é o centro totalizante da realidade. Suas experiências esvaem-se de preocupações sérias com o outro para se ocuparem de frequentes objetos de autobajulação, como a defesa de mudanças radicais e abstratas cujos resultados eles mesmos desconhecem.

De outro modo, os otimistas razoáveis, os “escrupulosos”, sabem que vivem em um mundo de limitações e que mudá-las é difícil. Ademais, o resultado dessa mudança não está sob controle das nossas mais belas intenções. Transformar a si mesmo em vez de transformar as limitações do meio é mais viável por olhar para além do egoísmo do “eu”; é respeitar as constantes das quais os valores de outros também dependem.

O estado de natureza inclui outros membros, que tencionam satisfazer seus desejos particulares e competir pelos recursos do mundo. A liberdade genuína só pode surgir quando entre os indivíduos há o reconhecimento mútuo e a reciprocidade, respaldados pelas leis e instituições que representam o núcleo da moralidade. Portanto, diz Scruton, não nascemos livres: a liberdade é algo que conquistamos — por meio da obediência.

III. Tensão incoerente

Tratando da Revolução Francesa, Scruton nota que Edmund Burke observou que toda a ação revolucionária daquele evento estava sujeita ao plano maior de estabelecer uma sociedade de “liberdade, igualdade e fraternidade”, embora o lema carregasse uma contradição: se as pessoas tiverem liberdade, elas a usarão para seguir suas próprias aptidões e vontades diferentes. Se a igualdade for princípio fundamental, a liberdade precisa ser eliminada. No fim das contas, conclui Scruton, os revolucionários aboliram a liberdade e impuseram uma nova forma de desigualdade — entre os senhores que detinham poder político e o resto que eram seus escravos. O equívoco francês, na visão do filósofo, foi o que ele rotulou de “falácia da agregação”: acrescentar um bem sobre o outro em uma lista de desejos crescente, sem refletir se a combinação faz sentido ou é apropriada. Para os franceses revolucionários, a liberdade era boa, a igualdade era boa e a fraternidade era boa. Logo, sua combinação só poderia ser três vezes boa. “Isso equivale a dizer que se a lagosta é boa, o chocolate é bom e o ketchup é bom, então a lagosta cozida com chocolate e ketchup é três vezes boa.”

Para Scruton, cada vez mais, desde aqueles tempos, a humanidade tem cometido o mesmo erro, trasvestindo a busca da igualdade na verdadeira liberdade e sustentando a opinião de que o Estado deve agir como libertador das massas. Essa exigência diz respeito à liberdade igual, retomando o problema. E se, questiona o autor, só for possível tornar a liberdade igual recorrendo à sua eliminação? Ataques às liberdades têm sido feitos em nome da liberdade; direitos de grupos têm sido criados a fim de justificar a discriminação em nome da não discriminação; tratamentos desiguais têm sido praticados em nome do tratamento igual. Advoga-se, concomitantemente, a expansão do regulamento estatal na esfera pública e sua exclusão na esfera privada, sob a escusa de que as pessoas precisam se “libertar”.

Segundo afirma Scruton, a era da modernidade e o Zeitgeist — o “espírito do tempo” — tornaram-se estratégias retóricas usadas para justificar inovações grosseiras em todas as áreas e repudiar o passado. O filósofo chamou essa falácia de “a falácia do espírito móvel”: assimilar a história de forma linear e gradual, como um desenvolvimento contínuo, sendo cada período estágios sucessivos. É uma forma de pensamento retrospectivo, que considera as ações dos indivíduos vivos como consequências necessárias da época em que vivem. Scruton explica que esse jeito de encarar as coisas é falacioso porque aplica um método para tornar compreensível o passado no presente e no futuro, entendendo as novas práticas culturais, morais e outras como produtos do progresso científico, isto é, mais avançadas e melhores. Esse último fator Scruton considera como agravante significativo: é questionável crer que haja aperfeiçoamento moral, artístico ou espiritual contínuos com a mesma velocidade da ciência; ao contrário, parece haver mais um declínio de uma geração para outra. Tornou-se lugar-comum aceitar qualquer perspectiva artística, musical e arquitetônica, por mais frívola e insignificante que seja, como símbolo de “resistência” à coerção que os artistas supostamente sofrem.

Roger Scruton recorda que não há fórmulas para a criatividade e produção de alta qualidade, mas regras que evoluíram num diálogo entre artista e público durante séculos, resultadas do gosto, da comunicação e da tradição de satisfação. Uma dose de realismo relembraria as pessoas que tudo aquilo que é grande é tão difícil de compreender quanto de encontrar.

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