Ponerologia, de Andrew Lobaczewski (Parte II)

Arthur S. E.
10 min readDec 22, 2019

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“O mero entendimento da natureza da doença dá início à cura das mentes e almas humanas.”
— Andrew M. Lobaczewski

“Like Sheep They are Laid in the Grave” por James Tissot • Wikimedia Commons

Veremos agora, nesta segunda parte sobre a obra Ponerologia: Psicopatas no Poder, do polonês Andrew Lobaczewski (1921–2008), outras psicopatias e fatores patológicos discutidos pelo psicólogo.

Comecemos pela psicopatia astênica. Como o nome revela, ela é relativa àqueles que apresentam sentimentos ou emoções depressivas. Os portadores dessa anomalia não demonstram a mesma deficiência óbvia nos sentimentos morais e na capacidade de perceber as situações psicológicas, como ocorre nos psicopatas essenciais, mencionados na Parte I.

Os sonhos dos psicopatas astênicos são compostos de certo idealismo similar às ideias das pessoas normais. Eles gostariam de reformar o mundo, para que ficassem de acordo com seu gosto, mas não são capazes de visualizar as consequências de longo prazo. Inspiradas pelo desvio, suas visões podem influenciar rebeldes ingênuos ou pessoas que sofrem injustiça. A existência de injustiça social pode parecer justificativa para temperamentos radicais. Mesmo se forem bem-sucedidos em realizar o sonho de juventude, ganhando poder sobre a sociedade, a dicotomia de mundos permanece para sempre. Eles continuam traumatizando a personalidade das pessoas com a finalidade de atingir seus desejos. Estão preparados para lutar e sofrer pelo bem do novo mundo. Não hesitam em infligir dor aos demais, visto que não são exatamente da mesma espécie — ilusão que legitima a matança, já que o tormento dos “outros” não lhes causa um pingo de compaixão.

IV. Processos e fenômenos ponerogênicos

Andrew Lobaczewski formulou categorias de características, traços e faculdades que englobam a personalidade ponerogênica. Ei-las:

Egotismo: é a atitude subconsciente pela qual atribuímos valor exacerbado aos nossos reflexos instintivos, aos nossos hábitos e à nossa visão de mundo individual; em suma, à nossa personalidade. Um egotista, diz Lobaczewski, mede as demais pessoas pelos seus próprios parâmetros. Ele gostaria de forçar os outros a sentir e a pensar do seu jeito. O egotismo é propriedade imutável da personalidade histérica. O ciclo de histeria, mencionado na Parte I, é causa do aumento no egotismo.

A principal razão para o desenvolvimento de uma personalidade egotista em uma pessoa normal é a contaminação, mediante indução psicológica, por pessoas excessivamente egotistas ou histéricas que já desenvolveram esta característica sob a influência de outras raízes patológicas. A educação correta e a autoeducação ajudam a “de-egotizar” um jovem ou adulto, oferecendo caminhos equilibrados.

Interpretação moralizante: é a tendência a interpretar fenômenos essencialmente patológicos com bases morais. A moralização sempre surge da visão de mundo natural, como foi explicado. Ela intensifica-se toda vez que nossos instintos morais naturais assumem o controle da razão, limitando a capacidade de reação aos fatores causais do mal e atiçando o desejo de vingança. Uma nova chama nos processo ponerogênicos se acende.

Paramoralismos: o paramoralismo, de alguma forma, esquiva-se com esperteza do controle do senso comum, levando porventura à aceitação ou à aprovação de comportamentos que são claramente patológicos, em nome de “uma moral superior”, de “um objetivo maior”. Tais sugestões privam parcialmente as pessoas do raciocínio moral e deformam o desenvolvimento deste nos mais jovens. Elas derivam, sobretudo, da rejeição subconsciente de intuições insistentes no fato de que alguma coisa está errada — a “voz da consciência”, como denominou Lobaczewski.

Bloqueio reversivo: é a persistência enfática em algo que é o oposto da verdade, o que bloqueia a percepção da realidade dos fatos. A pessoa inicia a busca pela resposta entre a verdade e seu oposto, porém termina com alguma falsificação satisfatória que a dirige ao oposto da verdade. Pode tornar-se um paramoralismo extremo.

Seleção e substituição de informação: aqui existem a seleção e substituição de premissas e o bloqueio de conclusão. A seleção de premissas acontece quando o retorno às bases da argumentação penetra profundamente no raciocínio para excluir do seu banco de dados somente aqueles que foram responsáveis por uma conclusão desconfortável, reprimindo-os para o subconsciente. Deste modo, o subconsciente permite o raciocínio cuja conclusão é preconcebida. Um hábito instala-se no comando: todo material similar àqueles que levaram a conclusões desagradáveis no passado é tratado da mesma forma, ainda que ele resulte em conclusão vantajosa para a pessoa.

Para que as conclusões sejam sempre convenientes à opinião antecipada e tendenciosa, a substituição de premissas precisa entrar em cena. Tais substituições são, frequentemente, efetuadas coletivamente, em grupos de pessoas, por meio de comunicação verbal. Essas pessoas perdem a capacidade crítica natural em relações às declarações de indivíduos cujos pensamentos foram afetados por anomalias patológicas. Elas, portanto, param de diferenciar indivíduos normais dos patológicos.

O bloqueio de conclusão ocorre quando o raciocínio está correto até chegar à conclusão, momento frustrado por um alerta do subconsciente, que considera o resultado inadequado ou perturbador. A prevenção da desintegração da personalidade, que parece positiva, impõe-se. Porém, ela escraviza progressivamente a pessoa em seu subconsciente, deixando-a tensa e amargurada.

V. Associações ponerogênicas e fenômenos macrossociais

Andrew Lobaczewski chama de associações ponerogênicas qualquer grupo de pessoas em que “os portadores de vários fatores patológicos funcionam como inspiradores, propagandistas e líderes, e onde é gerada uma estrutura social patológica”. Uma característica comum em todas as associações ponerogênicas é que seus membros perdem a capacidade de perceber indivíduos patológicos como tais, enxergando seus atos de modo fascinante ou heroico.

O tipo de união que o psicólogo analisa em sua obra é a que foi fundada em nome de alguma ideia com significado independente, compreendida pelos cidadãos, mas que posteriormente sucumbiu a degradações. Para que uma associação ponerogênica grande tenha sucesso é necessário que ela, caracterizada por objetivos sociais e políticos ou por uma ideologia, seja aceita por grande número de pessoas antes de se submeter ao processo de malignidade. Quando isso ocorre, os valores primários irão dar suporte e proteger tal união porque os nomes e os símbolos são mantidos, embora aqueles valores já tenham sido substituídos e remodelados à medida que a organização se rende à decomposição e se torna diferente da inicial.

A ideologia particular da associação ponerogênica age como um paramoralismo: justifica suas atividades. Ela possui duas camadas: a de fora, mais próxima do conteúdo original e utilizada para fins propagandísticos, especialmente aos outros países, e a camada de dentro, direcionada à elite, composta de significados diferentes para os mesmos nomes. Apesar disso, ela possui pontos invariáveis: as motivações de um grupo injustiçado, um conserto radical do que está errado e os valores “irretocáveis” de seus membros.

No início, a união ainda demonstra certas “características românticas” e não apresenta indícios de prática brutal. No entanto, os membros normais são colocados em funções marginais e são excluídos das reuniões secretas da organização. Eles logo deixam a união. Indivíduos com anomalias herdades (esquizoides ou psicopatas essenciais) assumem as posições de liderança e de inspiração. O papel do líder, em especial, é assumido por um tipo mais digerível e representativo, um “talento de liderança”. As funções são divididas: o propagandista precisa do apoio do líder, que em troca precisa do propagandista para sustentar a ideologia da união, crucial para manter adequada a postura dos membros mais críticos.

O propagandista tem o trabalho de remodelar a ideologia, inserindo novos conteúdos sob velhos títulos, de forma que possa continuar representando a função de propaganda sob circunstâncias que mudam o tempo todo. Conseguintemente, a ideologia também muda o tempo todo.

O líder é dependente dos interesses da união. Ele é um ator com um diretor. A elite, um grupo de indivíduos psicopatas escondido nos bastidores, dirige o líder (como a relação entre Martin Bormann, chefe da sede do Partido Nazista Alemão, e Adolf Hitler). Se o líder não cumpre o papel delineado pela elite, ele sabe que pode ser apagado do mapa.

O fenômeno ponerogênico macrossocial só pode ocorrer ao passo que a associação descrita acima circula a classe dominante inteira, não oferecendo espaço para oposição das pessoas normais. Ela divide-se em dois estados:

O primeiro estado dá-se num período de crise espiritual da comunidade, enquanto se esgota dos valores morais e religiosos, afrouxando as obrigações sociomorais. A hierarquia de valores desestrutura-se e o egoísmo aumenta. Aqui o clico de histeria já predomina. Revoluções, guerras e tragédias sangrentas são inevitáveis.

O segundo estado emerge do primeiro, quando este atinge histeria máxima. Ela é chamada de patocracia. A aceitação patológica do material de escritores esquizoides, como Karl Marx, tanto por indivíduos com deficiências e deformações de personalidade, como por pessoas prejudicadas pelas injustiças sociais, é o primeiro passo para seu surgimento. Os caracteropatas, aqueles com transtornos de caráter, adotam essa ideologia criada por esquizoides e a ajustam na estética da propaganda. A linguagem dupla que eles formam é utilizada para mascarar suas motivações e esconder os novos conteúdos.

O fascínio dos psicopatas em tais movimentos desponta. Mas não exclusivamente devido a seu egotismo e perda de escrúpulos morais, afirma Lobaczewski. Eles foram, de fato, feridos de alguma maneira. (Nesta matéria do El País, as frustrações, os traumas e os danos psicológicos sofridos pelos ditadores do séc. XX durante suas infâncias são apontados.)

Uma ideologia que libera uma classe social ou uma nação da injustiça pode, assim, parecer amigável para eles. Infelizmente, ela também dá origem a esperanças irreais de que eles também serão libertados. As motivações patológicas que aparecem em uma união, no momento em que ela começa a ser afetada pelo processo ponerogênico, os atingem como familiares e inspiradoras de esperança. Eles, consequentemente, se inserem dentro de tais movimentos, pregando a revolução e a guerra contra aquele mundo injusto tão estranho para eles.

Eles vão subindo na escala organizacional por causa do apoio e respeito de alguns revolucionários mais extremistas. Direcionam, pois, os conteúdos de todo o grupo para o seu modo particular de enxergar a realidade. Uma seleção negativa sucede-se: o homem normal é considerado inútil exceto para o trabalho pesado e para a luta; o psicopata essencial consolida-se como inspirador do grupo.

O triunfo sangrento da minoria patológica sobre a maioria é considerado uma fase de transição, durante a qual novos conteúdos são ajustados. Nesse ponto, usar o nome da ideologia original para designar esse fenômeno é algo sem sentido e um erro, conta Lobaczewski.

Patocracia é, assim, um sistema no qual uma minoria patológica assume o controle sobre a sociedade de pessoas normais, mediante capa ideológica.

Para reduzir a ameaça ao seu poder, os patocratas têm de usar todos e quaisquer meios efetivos de terror e de exterminação contra os indivíduos com sentimentos patrióticos. A doutrinação também é usada para patologizar os pensamentos dos cidadãos. Esse é um objetivo indispensável na visão dos patocratas. Todavia, os resultados são limitados, porque a maioria começa a perceber os pontos fracos do sistema e a adquirir, portanto, métodos de imunização psicológica. A separação entre os patocratas e a sociedade evidencia-se.

A patocracia precisa se manter por qualquer meio. A propaganda ideológica não é suficiente para esconder a face patológica de seu sistema, principalmente quando há relações comerciais com os países normais. O reconhecimento internacional aparece como tática política: isso tende à limitação das medidas de terror, sujeitando a propaganda e a doutrinação somente a certas esferas. A patocracia continua a seguir seu curso recorrendo a uma nova fase: a fase dissimulativa. As atividades tornam-se moderadas, e a patocracia coexiste com os países cujo sistema é normal. Em pontos estratégicos, como postos com exposição internacional, os indivíduos com características patológicas evidentes devem ser substituídos por pessoas de pensamento mais similar ao das pessoas normais.

A sobrevivência do sistema vira um imperativo moral para os patocratas, e a permanência no topo, uma questão de “ser ou não ser”. A destruição biológica, psicológica, moral e econômica das pessoas normais faz-se necessária. Os campos de concentração e a guerra com inimigo bem armado são meios que servem para esse fim. Quando os filhos das pessoas normais, enviadas à guerra para lutar por “causa nobre”, morrem, são decretados heróis a serem reverenciados, induzindo a próxima geração a ser fiel à patocracia.

Um último fator limita a ação da maioria: a pobreza. A patocracia não consegue administrar as coisas apropriadamente, como a agricultura. O racionamento de comida é a consequência. Países cujos sistemas oferecem produtos industriais de qualidade despertam na patocracia a vontade de dominação: a prosperidade pode ser explorada e os cidadãos, forçados a trabalhar por pouco dinheiro, avaliam os patocratas. Pelas suas cabeças não passa a ideia de que a introdução do sistema patocrático, que falhou miseravelmente no território original, eventualmente causará as mesmas condições no país conquistado.

Ainda assim, a nação subjugada à patocracia encontra apoio e inspiração para a resistência moral e psicológica na sua própria cultura, religião e tradições morais. Esses valores, elaborados por séculos, não podem ser facilmente destruídos pelos patocratas. Ao contrário, eles empreendem vida mais intensiva e gradativamente vão purificando-se, limpando-se, das besteiras patocráticas. Valores que não poderiam ter surgido durante os tempos felizes florescem.

As verdades básicas da religião proporcionam o redescobrimento de valores antigos, indicando o sentido da vida e da história. A habilidade de compreender os outros, por ação da aceitação da existência de uma realidade análoga, se fortalece.

São duas as possibilidades para a relação entre a patocracia e a religião: ou a associação religiosa se rende à infecção e ao processo ponerogênico, ou a patocracia mesma se junta a movimentos seculares, desembocando um conflito com as organizações religiosas. O homem necessita tanto da religião que cada grupo religioso contém grande número de pessoas normais que não se desencorajam, formando forte corrente contra o mal.

VI. Dose de realismo

Andrew Lobaczewski comenta que a experiência histórica tem ensinado que qualquer tentativa de realizar a ideia comunista pelo caminho revolucionário leva ao processo patológico e, por conseguinte, à ponerogênese. A pessoa que já tenha ouvido ou lido sobre tais sistemas cruéis de governo (assim como dos fascistas) sente que possui opinião formada sobre eles. A confrontação direta com o fenômeno, contudo, produziria nela um sentimento de impotência intelectual surreal. Suas imaginações anteriores se mostrariam inúteis, provocando uma sensação de que ela e a sociedade em que foi educada são bastante ingênuas.

Um sistema em que a maior parte da propriedade e das riquezas pertence ao Estado, “pela lei e na prática”, é capitalismo de Estado, não comunismo. Tal sistema “exibe as características de um explorador capitalista primitivo do século XIX”. Um socialista que preste, diz Lobaczewski, que busca substituir o capitalismo por algum sistema em conformidade com as ideias “proletárias”, rejeitaria tal sistema como “a pior variedade de capitalismo”.

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