Midsommar, 2019: Qualquer coisa serve

Arthur S. E.
4 min readNov 28, 2019

--

Texto escrito para o blog Sala Lights Out

“Judith Beheading Holofernes” por Caravaggio • Wikimedia Commons

“Estúpida é a opinião que crê que todas as opiniões são igualmente verdadeiras.” O alerta de um dos maiores expoentes da filosofia escolástica, Santo Tomás de Aquino, cai como uma luva para a nossa análise seguinte, assim como para os nossos tempos. A noção de que existe uma Verdade — a verdade objetiva, o fato, a constatação irrefutável –, sobre seja lá o que esteja em reflexão, tem sido cada vez mais desacreditada.

É bem aceitável que dificilmente conseguiremos alcançá-la quando coisas complexíssimas estão em jogo. No entanto, não significa que ela não exista; talvez apenas não nos seja inteligível. O mundo cósmico está para nós da mesma forma como o mundo dos homens está para as formigas.

Quando o sujeito diz com toda a convicção que “não existe verdade absoluta”, não percebe que entra em plena contradição: se ele acredita piamente que esse argumento é verdadeiro (e geralmente é o caso; se não fosse não estaria dizendo), a teoria de que não existe verdade absoluta não pode ser absoluta – e, portanto, é questionável. A descrença no verdadeiro abre caminho para relativismos, entre os quais o relativismo moral. Segundo ele, a moralidade é questão de opinião ou casualidades pessoais — não há certo e errado. De acordo com o psiquiatra canadense Norman Doidge, a ciência social materialista sobrepôs os objetos aos valores, dando mais importância aos primeiros do que os últimos, contribuindo para a visão relativista atual.

O longa ‘Midsommar’ foi inspirado em festa verdadeira que ocorre na Suécia entre os dias 20 e 26 de junho | Foto: corinaselberg/pixabay.com

Escrito e dirigido pelo cineasta Ari Aster, Midsommar — O Mal Não Espera a Noite (2019) relata a vida da jovem Dani que, depois de uma desgraça familiar, se encontra desorientada, ansiosa e sem chão. Somado a isso, ela nota que o relacionamento com seu namorado Christian está totalmente desgastado, e que não tem apoio nos momentos difíceis. Mesmo assim, decide viajar com ele e seus amigos para o festival de verão de um vilarejo na Suécia. Nele vive uma espécie de tribo em que tudo é partilhado por todos e cujos ritos e tradições são um tanto quanto bizarramente perturbadores.

Um sistema de crenças compartilhadas ajuda a combater o sofrimento e a buscar sentido na vida. Acontece que nem todos possuem o mesmo sistema de crenças, o que gera conflitos inevitáveis. No filme, Dani e seus amigos presenciam certa prática aterrorizante da tribo que abala completamente um casal londrino, também visitantes do local. Dani igualmente se incomoda, contudo sem empatia de seu namorado. Ela quer ir embora, mas após conversa comovente com Pelle, membro da comunidade, decide ficar. Seria esse o mesmo resultado caso sua relação com Christian estivesse sólida e estável como a do par londrino? Algo me diz que não.

Júlia Gavillan, do site Judao, analisa pontualmente que Christian é como um conjunto de muitas mágoas para Dani. Não é de surpreender. Dani está no fundo do poço, no caos, no território desconhecido da incerteza. Ela grita por ajuda e atenção. Amargurada e sem ninguém a seu lado, pouco a pouco se sente mais atraída pela comunidade e por aquelas pessoas que a acolhem e se preocupam com seu bem-estar. “Quem não quer conviver com pessoas que entendem, aceitam e compartilham suas dores? Todos já fomos atraídos por promessas como essa”, reflete Júlia.

Crises profundas são os momentos ideais para doutrinas e convicções perversas se aproveitarem do rancor severo instaurado. A mente relativista pode objetar que é somente a cultura do povoado e que o mais apropriado seria respeitá-la. O escritor inglês G. K. Chesterton responde implacavelmente: “Nós não nos podemos contentar com a vaga frase moderna de que tudo é defensável desde que seja sincero. Um satanista sincero é um pior satanista. Existem teorias tão vis, crenças tão abomináveis, que só podemos suportar a sua existência por descrer da sua sinceridade. A sinceridade nestes casos não tem qualquer valor moral. […] Existem opiniões que são, quer em sentido legal quer literal, intoleráveis. Senão estamos a afirmar que alguém que agiu perfidamente está desculpado se tiver pensado perfidamente também”.

Porém, Dani não se interessa pela seita por causa de suas normas, costumes ou religião; ela se interessa pela seita apesar deles. No intuito de não cair no pesadelo do isolamento ela abraça inconscientemente tal civilização, ativando sua autoestima: quem antes era ressentido, inseguro e explorado, é agora incluído, importante e empoderado para se vingar de seu “opressor” — mesmo que por meio de uma cultural da qual desconhece suas raízes e seus propósitos. O que importa é se sentir bem e pertencido. Para isso, vale tudo.

Publicado em: https://salalightsout.000webhostapp.com/qualquer-coisa-serve/

--

--

No responses yet