First Reformed, 2018: Só o amor salva
Texto escrito para o blog Sala Lights Out
Compreendemos, nas duas últimas publicações, que o acúmulo de ressentimento, quer mediante o abuso exercido pelo agente ativo quer permitido pela vítima passiva, ou ainda mediante a recusa de assumir responsabilidade pela vida, é fator-chave para ascensão da perda de sentido nas convenções fundamentais que mantêm a sanidade social. A cegueira voluntária a que o sujeito afligido adere deságua no pessimismo cujas consequências, se exagerado, são o vazio existencial, o masoquismo consciente e a revanche do ser em nome de algum lema vago.
Como constata o psicólogo canadense Jordan Peterson, já citado anteriormente, o sofrimento é um princípio inevitável da condição humana. Todo o ser humano sofre: uns menos, outros mais. Existem os que sofrem por causa da derrota de seu time na final do campeonato, uns por perderem o emprego e outros pela morte de um ente querido. Mas ainda há aqueles que sofreram por serem prisioneiros de campos de concentração. O senso de proporção faz toda a diferença. No último grupo esteve o psiquiatra austríaco Viktor Frankl, judeu prisioneiro na Alemanha nazista. No seu livro Em Busca de Sentido, narra sua trajetória até ser liberto e como a experiência nos campos de concentração o ajudou a fundar seu método psicoterapêutico, a Logoterapia. A pergunta óbvia é: como prosseguir diante de meios desprovidos de valor?
Negar o sofrimento é negar o ser. A ideia segundo a qual tudo aquilo que cria tensão, conflito e diferença deve ser erradicado, desenvolvendo assim a aliança entre as partes, a homogeneidade e a igualdade supremas, beira a ingenuidade. Foi da negação da experiência real que as ideias utópicas do século XX surgiram com a intenção de importar o transcendente ao terreno, o Céu à Terra.
Para Frankl, o que o ser humano precisa não é de um estado livre de tensões, mas sim a busca e a luta por um objetivo que valha a pena. Ele foi um exemplo que, na contramão da cultura cientificista e materialista de seu tempo, enxergou que o sentido da vida não é só derivado de justificações econômicas e políticas, porém também de explicações superiores de cunho espiritual e particular de cada um.
O filme First Reformed (2018), escrito e dirigido por Paul Schrader, conta a vida de um pastor protestante que passa por diversos tormentos ao longo de sua história: já teve uma esposa que o largou, seu único filho morreu no exército, membros da igreja em que atua estão envolvidos em casos suspeitos e, para piorar, é diagnosticado com câncer. Com tudo isso sobre as costas, Ernst Toller começa a indagar a Deus: inábil para realizar suas orações, sente que Ele o abandonou. Em meio a esse turbilhão, Toller é procurado por Mary e Michael, moradores da cidadezinha. O casal está prestes a ter um bebê.
Enquanto Mary está ansiosa, Michael não está disposto a ter o filho já que, como ambientalista radical, não concebe a ideia de trazer mais um ser humano a um mundo fadado à irreversível destruição provocada pelas mudanças climáticas. Toller argumenta que o que está dentro de Mary é tão vivo quanto árvores e animais em extinção e faz parte da natureza — nada adianta.
É necessário coragem para suportar a realidade como ela é, mesmo em ambientes adversos, onde nada parece ter sentido. Assim fez Viktor Frankl quando tudo lhe foi privado, menos a liberdade última de assumir uma atitude alternativa às condições impostas e de ser digno de seu sofrimento, pois “se a vida tem sentido”, diz ele, “também o sofrimento necessariamente o tem”.
Não obstante, Michael, quem não possui nenhuma base em que se apoiar além de seu extremismo apocalíptico oco, é consumido por decisões fatídicas, assim como os prisioneiros dos campos nazistas que sucumbiram às influências do meio e entregaram os pontos, espiritual e humanamente, por não terem nada a que se agarrar interiormente.
Não se pode dizer que Toller é imune de sofrimento depois do que foi mencionado acima. Mas, diferentemente de Michael, ele abraça seu próprio conselho: “A sabedoria é lidar, ao mesmo tempo, com duas verdades opostas em sua mente — esperança e desespero. Uma vida sem desespero é uma vida sem esperança”. Então, ele continua a batalhar pelo mínimo de ordem. Ele o encontra em Mary, que igualmente está perdida; ela torna-se o porquê de Toller, da mesma forma que a esposa de Frankl era a força motivacional, aquela que deu significado durante seu período preso.
De acordo com Frankl, o ser só consegue suprir a vontade de sentido quando se dirige a algo ou alguém além de si mesmo. Ele descobriu na pele aquilo que sempre esteve presente expressado em pensamento, na poesia e na fé: o amor como o bem excelso; “a redenção pelo amor e no amor!”
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